quarta-feira, 20 de junho de 2007

Verso, inverso, avesso

Verso
Verso é a tentativa magica de descrever a vida
De narrar o evento que foi contado,
De romantizar a vid
De embelezar o trágico,
De rir da trama.

Inverso
Inverso é o verso que não deu certo
Que deveria começar com a luz mas surgiu com a sombra
Que assombrou o cotidiano,
E desdizeu o dito
Que recusou a ver a vida como ela é
E começou pela poesia do não-ser
Inverso é a tentativa de narrar o verso pelo improvável
Começar com o não ao invés do sim.

Avesso
É a vida vista pelo seu lado inverso
É o que começa por dentro, não pela estética
Que cada vez que foge mais se aproxima
Que quanto mais odeia, mais ama
Avesso é o não-ser, é o ser-não
Avesso é a vida re-interpretada,
Que começa a análise pelo lado não existente

quinta-feira, 1 de março de 2007

O valor do nome

Garoto esperto, não mais que cinco anos.
Filho do caseiro da fazenda,
Sadio, arteiro, trabalhador, prestativo.
Cheguei pertinho dele e lhe abracei:
“Que saudade de você Mateus!”
Ele me olhou assustado,
Com seu jeito sereno e firme:
“O senhor não me conhece? Meu nome é Gabriel”.

Samuel Vieira
Fevereiro 2007

Maricota

Na verdade, simplesmente, Cocota.
Embora não tivesse nada a ver com as cocotinhas modernas.
Aliás, este adjetivo era sequer conhecido naqueles tempos.

De fato, ela era a anti-cocota.
Mulher da roça, jeito simples, hábitos modestos.
Vida repleta de concretude e realidade.
Comia do que colhia da terra, vida espartana.
Não reclamava, não maldizia a vida.
Não tinha tempo para pensar em si com 7 bocas para alimentar.
Seu marido também vivia no mesmo ritmo,
Acordar cedo, carpir, plantar.
Calado, reflexivo,
Vocabulário curto, jornada de trabalho longa.
Sua simplicidade e timidez justificavam seu silêncio.
Seu silêncio justificava sua timidez.
Apesar disto, cocota tinha seus caprichos,
Vaidade e desejos se escondem na simplicidade da vida.
Gente pobre também tem fantasias e cria seus desejos.
Nada demais...besteirinhas de mulher.
Coisa de gente pobre, vaidade feminina.
“Quem não se ajeita por si se enjeita”

Apesar do homem mandar, eram as mulheres quem ditavam as regras.
Mesmo assim não conseguia convencer o marido de certos “luxos”,
De pequenos confortos.
Coisas simples...bobagens de mulher...

Ao receber a visita rara de um amigo do marido
Não teve duvidas em pedir socorro:
“Ele não me dá nenhum ‘confoito’, vê se explica prá ele”.
A voz era de certa súplica, desejo de ser ouvida.
O marido pigarreou, sentiu-se ameaçado, se encolheu todo,
Como um animal acuado,
Ao cruzar com olhar da mulher e do marido,
Com ressentimento e rancor na voz,
Justificando-se respondeu:
“confoito é arroz com abroibra”

É...para quem se endureceu prá viver,
E se calejou na vida.
Para quem luta para a sobrevivência.
Parece que não existe nada além de comida.
Conforto é privilégio de ricos,
Não desejo de mulher...
Samuel Vieira
Fevereiro 2007

Doenças do amor

Sempre ouvi falar que o amor é o melhor método terapêutico.
Que nada é tão restaurador que amar e ser amado.
No entanto, me confundo com a confusão do amor,
E as doenças que ele traz em si.

Existem aqueles que de tanto amar
Deixam de amar a própria vida.
Tomados por uma ardente paixão,
Se corrompem, se vendem, se traem.

Existem aqueles que de tanto amar,
Confundem sua vida com a do outro
E a dor e neurose do outro,
Tornam-se a angustia do seu coração.
Cria-se uma simbiose incestuosa,
Incapazes de distinguir sujeito/objeto.

Existem aqueles que dizem matar por amor.
Quando o amor deve ser o agente vital da vida.
Violentam, ferem, abusam, destroem.
E se tornam vorazes com a pessoa amada
Que tipo de amor é capaz de destruir quem se ama?

Na verdade, somos capazes de adoecer as coisas mais sagradas.
Adoecemos nossa fé, tornando-a fim em si mesma.
Adoecemos nosso corpo, vendendo-o, privando-o.
Adoecemos nossa saúde, ferindo-nos, matando-nos.
Adoecemos nossas emoções com escolhas tolas e absurdas.

Mas o grande lamento em todas as coisas,
É que o amor seja vítima de tanto desamor.

Samuel Vieira
Fevereiro 2007

25 de Março

Espaço complexo de relações, teias e tramas
No burburinho de gente sofrida, buscando um lugar ao sol.
Soluções inacabadas...
Negros, índios, mestiços, imigrantes, nordestinos, paulistanos.
Todos envolvidos numa relação complexa e enigmática.
As bancas agem como termômetro:
Raaaaappaaa!!!
Os policiais entram em ação,
Como lobos ao redor do aprisco.
Teias enigmáticas de relações conflitivas de quem busca escapar
Perder seus produtos que cabem numa sacola.
Relação complexa para quem não pode deixar solto,
Mas não sabe o que fazer com a tarefa que lhe foi dada.
Já que também não quer prender...

As bancas são montadas e desmontadas num passe de mágica.
Copperfield não faria melhor.
Das ruas somem vendedores, camelôs, Cds Piratas.
E as ruas fervilham em busca de ritmo.
Existe certa musicalidade tocada numa orquestra de enigmas.
São Paulo não pode parar.

Os transeuntes e as cidades são os mesmos personagens.
A alma da cidade é a alma do povo que anda em suas ruas.
A cidade tem vida.
Relação ambivalente que abriga e acolhe.
A freada brusca, a aceleração mais forte.
Não é o carro andando, é o homem motor.

Vende-se de tudo: bexigas, carrinhos, massageador, envelopes, canetar, dvs, cds, perfumes.
Toda sorte de quinquilharias baratas que valem apenas o que valem
Ou talvez menos que se paga.

25 de Março: Poluída, agredida, entendida, decifrada, enigmática.
De pobres vendilhões, mercadores, falsificadores,
De policia de faz de conta,
Relações complexas e ambíguas,
De poderes escondidos detrás da muvuca da cidade.
De grandes ganhos detrás de pequenos mercadores.
De máfias não reveladas.

25 de Março:
quem te vê não sabe os verdadeiros agentes.
De gente que sustenta o status quo,
Que mantém relações de dependência,
Que faz existir a complexidade de tuas esquinas
De compradores e marqueteiros,
Razão de sua existência:
Pálida, pobre, suja, agitada, atraente, complexa.

25 de Março:
Miniatura de Brasil.

Samuel Vieira
Fevereiro 2007

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

O mistério do casamento

Na verdade nunca acreditei muito em casamento
Seus ingredientes têm sempre os componentes de nitroglicerina pura.
Casamento tem tudo para não dar certo!
Prá começar, é a união de um homem com uma mulher,
Cada um pensando em categorias próprias,
Nem sempre aristotélicas.
Relações de tempo e espaço são percebidas de forma completamente diferente entre macho e fêmea.
A sensibilidade feminina com a visão masculina,
Elektra e Édipo
Progesterona e testosterana.
É difícil estabelecer dialogo em pessoas que partem de pontos tão diferentes
Mistura pouco razoável.

Soma-se a isto os temperamentos tão distintos tentando fazer coisas juntas.
Como é que pessoas com visões diferenciadas podem construir positivamente?
Vocês já viram algum homem que tenha compatibilidade de gênio,
Com o indomável gênio de uma mulher?
E quem, de bom senso, deseja uma mulher domada?
Mulher é por natureza de natureza indomável...
Ai surge a incompatibilidade de gênio,
“Uma pequena frase, criada por pequenos juristas, para justificar o divórcio”
Afinal,
Todos somos incompatíveis.
Colocados juntos, as diferenças hormonais e as interpretações da vida,
Trazem como resultado, na melhor das hipóteses, o caos na sua mais profunda essência.

Casamento possui uma fórmula perigosa.
Sua equação é muito pouco sensata.
Mas quando um homem encontra com a mulher que ama,
Ele vai ao fundo, perde o foco, perde a coerência.
Torna-se intransigente na sua posição,
Incoerente na sua análise,
Raso na sua hermenêutica,
Porque não existe nada mais mágico,
Cheio de vida,
Tão arriscado
Tão profano e sagrado,
Que o encontro de um homem com uma mulher.
Nada tão pouco razoável,
E nada que faça tanto sentido.
Nesta incoerência tão lógica,
Neste barbarismo tão coerente
Nesta desumanidade humana.
O casamento,
Que tem tudo para não dar certo.
É a coisa mais certa do mundo...

O Mentiroso

Mentia tanto que já não sabíamos onde começava o homem e terminava a fabula.
Ele mesmo já não sabia mais o que era fantasia e realidade.
Quais eventos era reais ou mitos
Assim era sua vida: verdade falsificada
Falsa verdade.
Sua mentira já não era mais ofensa,
Nem questão de caráter.
Sua mentira era ele mesmo,
Ele era a grande farsa.
Sua vida era a contradição encarnada.
Tornou-se objeto de chacota,
Comentário fortuito à roda da mesa do bar.
Mentira...

Podia contar a mais verdadeira das historias,
E quanto mais enfatizava ser verdade,
Mais parecia mentira.
Tornou-se a mentira.
Ela não apenas a contava – era ela mesma.
O que fazer qunado o ser deixa de ser a realidade?
Para virar o não ser?
O que fazer quando a mentira se torna a biografia e reflete a personalidade?
Como se livrar do espectro de não apenas falar a mentira, mas de ser a mentira?
Quem pode livrar o mentiroso de si mesmo,
Quando ele se torna a encarnação da mentira?
Quando a narrativa e o narrador se co-fundem?

Samuel Vieira
Fevereiro 2007

O Inesperado

Você já se sentiu numa situação sobre a qual não tem controle?
Uma viagem planejada, com todos os bilhetes comprados,
Malas prontas, roteiro preparado,
Que infelizmente você não conseguiu realizar?
Uma noticia inesperada,
Um fato novo,
Uma tragédia,
Uma ameaça?
E você não conseguiu realizar seu sonho.
Imagine ainda,
A tentativa de ir para um determinado lugar
Com todas as conexões acertadas,
E você perde a primeira conexão,
E todas as demais tornam-se impossíveis?
Os planos são frustrados,
Os projetos nem sempre se realizam.
Você está se dirigindo ao aeroporto,
Um rush o pega no meio do caminho
O pneu do carro fura,
O carro para inexplicavelmente no meio da pista.
É... a vida tem destas coisas.
Não temos poder sobre o tempo,
Nem sobre o trânsito,
Sobre nossa saúde,
Ou sobre nós mesmos.
Quem dentre os homens tem pode sobre eventos sobrenaturais?
Sobre a morte, sobre o destino.
Quem é senhor dos seus próprios impulsos e paixões?
Quem pode antecipar sua própria biografia?
Para o tempo,
Defender-se do inesperado,
Controlar a fúria da natureza,
A violência do fogo,
A agressão inesperada?
Eventualmente nos sentimos à mercê do destino,
Escravos do acaso,
Cobaias de Deus.
Mas o inesperado também pode fazer sentido,
Quando se relativiza o controle,
Quando se abre mão da onipotência,
Quando se confia o inesperado àquele que nunca é pego de surpresa.
Quando se olha para o inesperado como oportunidade do novo, do sobrenatural,
De que algo não previsto se torne belo.
De que, não necessariamente, o inesperado é ruim,
Que seu acontecimento pode estar engravidado de sentido.
Quando se percebe que o inusitado tem seus desenhos, cores, propósitos.
Nas variações e musicalidade,
Dos eventos inesperados.

Livres para morrer

Liberdade é sempre associada a vida,
Porque não existe uma vida digna de ser vivida sem liberdade.
Nem sempre perguntamos liberdade de que,
Ou liberdade para que,
Porém todos a aspiramos.
Ninguém tem interesse em viver numa bonita gaiola de ouro,
Com todo conforto, mas enjaulado.
Liberdade é essencial para viver
E é a essência da vida.
Mas não basta a liberdade para viver,
Precisamos ser livres para morrer.
Precisamos de liberdade para não nos atermos à vida
De forma que morrer se torne um pavor para nós.
Homens verdadeiramente livres são livres para viver
Porque também são livres para morrer.
Não desejam a morte em si mesma
Não conspiram quanto ao valor da vida
Tampouco se assustam com as ameaças dos poderosos,
Dos sistemas,
Da enfermidade ou da dor.
São livres para viver porque são livres para morrer.
A morte não lhes ameaça.
E isto se constitui numa enorme liberdade para si
São autênticos em todas as dimensões.
Autenticidade para a vida e para romper com a vida se necessário.
Homens livres não temem o enfrentamento com a vida.
Não desafiam a morte
Não apreciam a anti-vida
Não conspiram contra o valor da existência
Não desvalorizam a existência humana.
Celebram a vida mas não são escravizados ao viver,
A ponto de sacrificar sua coerência,
Sua consciência,
E sua própria liberdade.
Assim Jesus falava da morte.
Morte-transição!
Embora amasse a vida e lutasse contra a morte
Morreu com serenidade porque era livre para fazê-lo.
Sua liberdade lhe deu condições de ser o que foi na vida e morrer da forma como morreu
Apesar de nosso grande desejo de viver
Nunca devemos nos apavorar com a morte,
Porque apenas assim experimentaremos a verdadeira liberdade.

Espelho da alma

É o fim!
Simplesmente não posso e não quero mais
Estou só,
Faz frio,
É o fim!

Cessaram as utopias
Desfizeram-se as esperanças
Enganei-me e enganei os outros
Estou só!

Nem sei como a solidão chegou tão depressa
Tudo estava bem...
Ou pelo menos eu pensava estar
Mas tudo implodiu: a base estava podre.
E eu ficou só, tentando juntar os cacos.
Não se assuste com o meu desespero.
Porque ele é pior do que você imagina.
É o fim!

Primeiro foram os filhos,
Saindo devagar, um a um
Não suportavam mais minha intransigência
Na verdade nem eu me suporto mais
Embruteci, emagreci, enrijeci
Fique só!

Depois saiu minha mulher
Quebrada, moída, um farrapo.
Mas com a impressão de que já ia tarde
Não conseguiu me salvar, resolveu salvar a si mesma.

Estou só!
Preciso reencontrar meu norte
Preciso repensar a vida
Preciso reescrever minha história.

Quem conseguiu produzir enredo tão triste,
Com cuidado, fé e vontade
Pode reescrever sua nova história.
Quem foi tão estúpido em cometer tanta tolice
De forma tão estúpida
Deve ser nobre
Com um mínimo de bom senso,
Para buscar ajuda!
Você precisa se queimar na sua própria chama,
E impossível se renovar sem se tornar cinza.

Coisas de pobre

Pode parecer coisa de pobre,
E certamente o é.
Mas você já sentiu prazer maior que olhar o por do sol, sem pressa, sem agenda?
De conversar com gente simples, ouvir suas historias, sem negociar nem representar?
Já sentiram prazer em viajar de ônibus,
Nas mal cuidadas estradas do Brasil,
Entrando nas estranhas rodoviárias de nosso país?
Conversar com gente que pensa com categorias diferentes?
Sem ter que provar nada e não ser ninguém?
De andar nas ruas empoeiradas das cidades do interior,
Olhar as janelas, as casas, as pessoas,
Os meninos brincando nas ruas?
Imaginar suas histórias pessoais?
Ouvir as histórias contadas pelas casas antigas,
Refletir sobre sonhos e frustrações de quem já passou por ali?
De contemplar vilas de beiras de estrada,
Ver meninos descalços e seminus,
Sem nenhuma das preocupações que tantas vezes quase nos matam de ansiedade?
Sentir o cheiro do alho no feijão da panela de ferro,
Do fogão de lenha?
Sentir o cheiro da terra quando a chuva cai sobre ela,
Tomar um café na beira do fogão,
Pescar um lambari na beira do rio,
Chupar uma manga madura tirada do pé
Sentar ao redor da fogueira,
Assar uma carne com amigos,
Tocar violão sem pressa,
Ouvir grilos, corujas, bem-te-vis e quero-queros,
Enquanto a noite se torna mais densa?

Sei que isto é coisa de pobre,
Mas quanta riqueza existe nestas coisas simples?

Apreciação

Alimento-me muito bem de fantasias,
E facilmente me desmonto com elogios.
Bastam poucas palavras para que eu me derreta,
Pouca coisa é suficiente para alimentar meu coração vaidoso.

Um bom elogio me sustenta o mês inteiro,
Uma declaração honesta, um reconhecimento sincero,
Faz meu coração vagabundo saltar de alegria.

Não sei como podem sobreviver aqueles que vivem sem apreciação.
Uma mulher mal amada que ansiosamente aguarda a palavra que não vem.
Uma criança que faz de tudo para ser apreciada e nunca é vista.
Como viver se não nos enxergam?
Sem um olhar ou uma palavra de admiração?
Sem um abraço de reconhecimento.
Sem um prêmio diante das pequenas conquistas.

Como sobrevive um homem numa relação apenas de cobranças e críticas?
Um funcionário constantemente sob ameaça?
Que nunca volta pra casa com o peito estufado de orgulho de ser gente,
De fazer coisas que são apreciadas.
De uma manifestação de louvor de seu patrão...

A apreciação é a mola mestra da dignidade humana.
Nada valoriza tanto o ser humano
Do que ser olhado com admiração,
Ser visto como alguém competente e criativo.

Muita coisa mudaria em nossas pobres e vazias relações,
Se ao menos ouvíssemos:
“Isto foi bem feito!”
“Você está bonita...”
“Que coisa boa você fez...”
“Você é deemaaaiiiss!”

Se ao menos olhássemos o outro e o víssemos com alguém especial,
Carente e frágil como nós mesmos.
Mas ao mesmo tempo alguém especial,
Carregado de valor.
E fôssemos capazes de apreciar o bem que existe no outro,
Se o víssemos como uma dádiva de Deus, um dom dos céus...

E que esta nossa nova compreensão,
Se tornasse poética em demonstração e palavras.

Que falta temos de uma boa apreciação...

A esperança

Viver sem viver quem não consegue sonhar,
Quem vive por viver o mal vivido
Dormindo no caos, esperando o nada
Viver parcial, viver sem sentido.

Que desalento quem nunca espera
Um abraço querido, um sorriso chegando
A mulher amada, o filho querido
Quão triste é o viver se o viver não espera...

Vive por viver, quem não aguarda a vida
Quem anda sem rumo, caminha pro nada
Vive acidentalmente o acidente da vida
Entre o acidental nascimento e o acidente da morte.

Vive por viver quem não encontrou sentido,
No céu estrelado, na esperança porvir
Vive sem viver quem mata os sonhos
Deixa de existir, todo o nada por guia.

Feliz o coração que espera com fé
Que crê na vida, não teme a morte
Que vive uma vida centrada no norte
Da viva esperança que ensina a viver.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Pé-do-porco

Zona final.

Ponto de contacto entre bêbados e desencontrados.

Ali, nada acontecia – tudo acontecia.
Zezão morreu de valentia,
O cemitério está cheio de gente assim.
Carrinho de um tiro de garrucha,
Ao tentar forçar uma menina a beijá-lo.
Chico bana-rabo, de malandragem,
Estes normalmente partem cedo...
Queiroz de acidente,
Deixou muitas saudades.
Eulin de acidente,
Menino bom... outra dor no peito.

Só não morreu quem não ficou,

Para o restante, mera sobrevivência...
Porque nunca foi valente,
Porque nunca foi namorador,
Porque nunca foi ambicioso,

E se encontrou perdido nesta terra de ninguém.
Ficou ali no anonimato,
Na indiferença,
No silêncio dos anônimos.

Quanta história nesta terra de ninguém.

Quanta narrativa os esquecidos têm...

O espectro da miséria

Não me assusta a pobreza, a singeleza, a escassez,
Assusta-me a miséria.
Não há indignidade em não ter uma casa rica,
Andar com carro velho,
Ter um salário espartano.
Mas a miséria é dura...

É duro não ter trabalho digno,
É duro não conseguir trazer comida pra casa,
É duro não ter o mínimo,
É duro não ter certeza do amanhã,
É duro o frio sem cobertor.
É duro trabalhar e não ter,
É duro ter salário de fome,
É duro não ter remédio para o filho,
É duro não ter teto prá viver,
É duro transitar meio à morte e o esquecimento,
É duro não poder estudar o filho,
É duro a eterna marginalidade,

Mantida e sustentada pelo sistema injusto,
O mercado cruel,
O governo injusto,
Pelos pecados sociais endêmicos.

Pois coisas são tão vis e indignas,
Que viver na miséria,
Vivendo de frente a muita riqueza,
É duro equacionar o dilema,
De se acomodar no esquema,

De viver miseravelmente na miséria.

Negritude

Ele era alto e magro,
Excelente candidato a jogador de basquete.
Pobre, de hábitos simples,
Pele negra, África Zulú, quilombo.
Ética calvinista.
Alma pronta para o serviço e para servir,
Admirado por muitos, tornou-se político, vereador da cidade.
De repente estava ali, no meio de negociatas, arranjos, acordos, pactos.
Todos aqueles termos e atitudes não eram claramente entendidos por ele.
Tudo aquilo não fazia sentido para sua alma simples.
Estava ali para servir, era candidato do povo...
Procurado por seus correligionários recebeu a proposta irrecusável:
“Precisamos de seu apoio...”
“Seu voto é importante...”
“Podemos negociar...”
“Você ainda não tem uma casa para morar...”
Quando entendeu que avaliavam seu preço,
Quando entendeu os motivos de tantos mimos e promessas,
Ficou inquieto, indignado, irado.
De forma simples, firme, segura e direta.
Deu a resposta de seu preço,
Pediu o preço se seu passe.
Expulsando os proponentes infames,
Com voz forte,
olhar firme:
“Já foi o tempo em que preto se vendia, passar bem senhores...”

Menino do farol

Estava sempre na mesma área,
Vendendo chicletes,
Aprendiz de artes,
Malabarista de plantão,
Pedindo dinheiro,
Cheirando cola.

Cadê aquele menino que estava sempre aqui?
Vendendo chicletes, implorando vida?

Vitima de sua história, interagindo com ela,
Explicando-a,
Justificando-a,
Denunciando-a,
Defendendo-a.

Desapareceu...
Assim como chegou se foi,
Não faltarão substitutos: sem nome, sem história, sem documentos.
Delimitando um novo território.

Cadê o menino daqui?
Nesta manhã ele se foi e eu fiquei,
Mistério, enigma, semente, denúncia.
Seus sonhos, desejos, projetos ainda existirão?
Este menino ainda existe?
Terá ainda algum sonho consigo?

Que sonhos pode ter um menino que vende chicletes e implora vida?
Teria morrido o menino sem sonho,
Existirão ainda os sonhos do menino?

Estranho ritual

Todo o dia era a mesma coisa:
Acordar assustado
Tomar café às pressas,
Sair correndo para a escola.
Em dias de chuva ou de sol, era sempre a mesma coisa.
A cabeça de criança pensava em tudo, menos na matéria dada.
Que menino queria pensar em álgebra e gramática,
Se a poesia da vida se encontrava presente em todo lugar,
Menos na escola?
A escola era obrigatória, inegociável,
Por isto era sempre o mesmo ritual:
Acordar assustado
Tomar café às pressas,
Sair correndo para a escola.
Em casa estavam os passarinhos para cuidar,
Os amigos esperando para jogar peteca,
Soltar papagaio,
Jogar pelada,
A manga madura para chupar,
Os passarinhos de estimação nas lindas gaiolas penduradas na varanda,
E o mais importante,
Cuidar do tico.
Um franguinho de estimação, esperto, condicionado, domesticado.
Até hoje eu não sei se era o tico ou o menino que estavam condicionados,
Mas nesta relação simbiótica se mantenham e se nutriam.
Era só chamá-lo de um jeito especial e ele vinha de onde estivesse,
Desejoso de comer dos ricos manjares das mãos do dono,
Sempre havia restos de carne,
separadas de forma especial para o tico.
Até hoje creio que as outras galinhas sentiam ciúmes...
Ali estavam as guloseimas das aves.
Um dia, descuidadamente, o garoto não percebeu o calção rasgado,
Onde se podia avistar uma suculenta pelanca,
Manjar do franguinho, banquete de aves...hummmm...
A bicada foi eficiente como sempre, de forma certeira.
O garoto gritou de dor: peeegaaaa!!!! Maaatttaaaa!!!!
Ninguém entendia muito bem o que acontecera.
De repente o tico não era mais aliado, era um inimigo,
Forte combatente destinado ao calabouço,
Combatente feroz, precisava morrer, traidor.
Pedras e paus eram jogados enquanto o tico, desesperado fugiu no meio do mato.
O tico nunca entendeu,
O estranho ritual de seu dono naquele dia.

Encontro de família

Meu Deus!
Chegam de todos os lugares:
Minas, Brasília, Rio, Goiás, exterior...
Tão ligados e tão distantes:
O contemplativo
O centralizador
O narcissista
O malandro
O safado
O barulhento
O isolado.
Cada um representa um papel
Assume sua persona
Veste sua própria máscara.
O que vai acontecer desta vez?
Quem vai sair ferido deste encontro?
Qual será a fofoca que vai nutrir este evento quando se separarem?
Viram o jeito sensual da Maria?
O João está cada vez mais gordo...
Que mulher possessiva a esposa de Adolfo.
Viu a segunda mulher do Tuco?
Dizem que Cíntia está “vivendo” com o namorado.
O Betinho está quebrado...
Ouviu falar que o Lucas parou de estudar?

Que evento estranho é este:
Laços de família.

Tão neuróticos,
Tão distantes,
Tão críticos,
Tão diferentes,
Tão iguais...

A Velhice

Chegou tão depressa...
Como se fosse um passageiro da utopia
Como se fosse ontem
Mudaram as percepções,
Mudaram os valores,
Mudaram os enfoques.
Só não mudo eu. Sou duro. Sou o mesmo.
Menos resistente
Um tanto quanto gasto,
Dispersivo e lento.
No entanto,
A velhice e eu somos um.
Ela chegou e eu já estava aqui,
Mas eu era ela mesma.
Agora, eis-me aqui, escravo de sua tirania
Hospede de sua realidade.
Eu e ela nos fundimos – somos um só!
Encontro-me distendido entre o que eu sou e quem eu penso ser.
Quero dominar e sou dominado
Quero ser eu e já não sou mais
Meu corpo e meus desejos entram em disputa
Sei o que quero, não posso o que sei.
Nesta confusão tento me entender
Demorei tanto para me perceber e ver
E agora o meu eu difere de mim mesmo.
Minha mente parece boa
Mas meu corpo é incapaz de segui-la
O que eu sou não é quem eu sou.
Sou um outro dentro de mim
Em luta contra a velhice, que sou eu mesmo.

Chegou tão depressa...
Não me preparei para recebê-la.
Tão estranho,
Tão distante,
Tão eu...

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

A vaidade das letras.

É tarde,
e eu estou aqui brincando com as palavras
Tentando achar formas de dizer o que não preciso dizer
De falar da vida já tanto falada
De contar histórias já esquecidas

Nem sei o que fascina pensar nas palavras
Se estou certo de que meus devaneios
Mais cedo ou mais tarde se perdem num canto
Uma escrita qualquer, sem leitor, sem valor.

Na verdade não escrevo para ser apreciado
Brincar com as letras é pura vaidade
Narcisismo essencial de quem se enamora
Com a sua própria imagem refletida no espelho da alma

Escrever poemas é essencial à vida de quem,
De uma forma tola e ingênua
Acha que falar de si, falar da vida
Tem algum valor, faz algum sentido.

Por isto,
É tarde,
E eu estou aqui ainda brincando com as palavras.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Antologia Poética

Suas canções sempre se deram na rua dos cataventos,
Falavam de sapatos floridos,
Espelhos mágicos,
Pé de pilão,
Histórias sobrenaturais.
Na verdade, ele nunca passou de um aprendiz de feiticeiro,
Com suas antologias poéticas.
Povoando sonhos,
Criando magias.
Que poeta pode falar com tamanha galhardia
De Quintanares,
A vaca e o hipógrifo,
O nariz de vidro?
Na volta da esquina,
Nos esconderijos do tempo,
Sua primavera cruz o rio.
São os preparativos de viagem,
Coroados nos seus oitenta anos de poesia,
Pintando cores invisíveis,
Falando de velórios sem defuntos,
Fazendo seus preparativos de viagem,
Atravessando portas giratórias,
Abrindo os baús cheios de espanto,
Transformando seus sapatos furados,
Usando a preguiça como método de trabalho
Ensinava Lili inventar o mundo
E os amantes da poesia a sonhar.

Samuel Vieira
Anápolis
Fevereiro 2007

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Perdas...

Não transforme seu fracasso num troféu
Não se apegue a dor como um trunfo,
Não se torne vitima.
É tão fácil justificar o fracasso,
Encontrar razões para compensar o medo
Se afogar na culpa
Culpar os outros.
Seu fracasso é real, você falhou
Mas isto não lhe faz menor
Grandes homens foram transformados diante das perdas
E fizeram disto grandes lucros.
Nem toda perda é perda...
Nem todo ganho é ganho...
Não seja severo demais contigo
Não se vitimize
Não se justifique nem se explique demais.
Não se reduza a um momento da história
Há tempo de ganhar e tempo de perder
Por isto,
Não valorize seu fracasso
Não o exponha como um troféu
Não o coloque na prateleira
Ninguém se relaciona produtivamente com o outro movido por dó,
Apenas gente enferma de alma gosta disto
Não negue a dor
Não faça de conta,
Mas nunca transforme sua dor em troféu.

O mundo está repleto!

Nossa!
O mundo está repleto,
De pessoas
De coisas
De sons e de cores
De carros.
30 pares de sapatos, só dois pés,
50 calças, um só corpo
tornamos o mundo complexo
narcisismo puro!

Nossa!
O mundo está repleto
Mas minha alma está vazia
Falta sentido,
Falta missão,
Faltam sonhos.
O mundo está repleto e eu continuo só,
Sem ter alguém,
Neste mundo tão cheio!

O anti poeta

Que atrevimento aventurar-se na arte
Que só os verdadeiros poetas podem exprimir
Tentar ser a voz de quem não consegue
Falar de si mesmo, falar por si mesmo.

Poesia precisa ser respeitada, não pode ser palavra na boca de profano
Poesia é arte que nasce de dentro
E só é descoberta por quem se agoniza.

Sou o anti poeta, que ama a poesia
É que a poesia tem seus eleitos
Nem todos que tentam encontram a rima
Nem tudo na vida é verso e trova.

Ser poeta é uma arte doada pelos deuses
É um prêmio, é um dom, puro desejo
Por isto é raro encontra poesia
Na vida sem prosa, sonetos e tons.

Sou o anti poeta na busca das linhas
Sou o anti poeta na busca das rimas
Sou o anti poeta na busca dos sons
Sou o anti poeta na busca de mim mesmo!

Nunca

Nunca é um tempo longo demais
Nunca diga nunca, é perda de tempo
E o tempo é mestre em rir das promessas
De quem se acha seguro, inflexível na vida.

Diga não àquilo que vem hoje
Meio torto, meio fora de hora
Seu não é propicio para este momento,
Quem sabe, amanhã, o não seja sim?

Um não deve estar sempre presente
O não que viola, fere e mata,
Mesmo assim deixe o nunca no seu lugar
O nunca é severo, mas não é eterno.

Deixe espaço para arrependimento, deixe brechas para amar.
O nunca tem o poder de extinguir o perdão.
O nunca se fecha e a vida endurece
Nos torna implacável, duro demais.

Deixe sempre a porta aberta para repensar valores
Questionar a vida, olhar-se no espelho
Não diga nunca, nunca é longo demais.
Diga não agora, amanhã, quem sabe?

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Tori

Era assim...
Meio animal, meio humano,
Imundo demais para não ser percebido:
A cachaça, o desvalor, o abandono, o descaso.
Levaram à perda de sua identidade.
Na inevitável e fatal dominação de um cultura sobre a outra.
Vendeu sua alma,
Perdeu seus sonhos,
Destruiu a saúde.
Agora tentava se tornar gente, indigente.

De que tribo viera?
Que valores, cosmovisão, desejos e pensamentos outrora povoaram sua alma?
Identidade?
Cultura?
Nome?
Tori!
Arrancado de sua própria história,
Roubado sutilmente de seu povo,
“Civilizara-se”...
Sem termo, sem ermo, sem terra, desarraigado de sua história,
Fora arrastado no turbilhão da aculturação.
Apareceu por ali,
No meio dos botecos, dormindo ao relento, meio humano, meio animal.
Sem vontade, sem propósito, sem desejos.
Perdera a capacidade de amar as coisas e a vida,
Parecia viver refletindo na sua anti sobriedade,
Olhar distante, voz meio embargada, falando devagar.
Um filósofo dinamarquês nas poeiras de um lugar qualquer.
Caminhava cambaleante pelas ruas da cidade,
Recebendo um bocado ali, outro aqui,
Levando a vida do jeito que ela o levava,
Tentando reencontrar sua rica história,
Que se perdera na pobreza humana.
Escravo... desejando reencontrar sua infância livre.
Difícil reencontro.
Tori:
Índio, povo querido, gente boa.
Não precisava muito para que se sentisse bem,
Mas o pouco era inexistente.
Saudade da tribo?
Saudade de seu povo?
Saudade de si mesmo?
De um tempo perdido no tempo?
Ausência de sentido?
Identidade?
O que pode ser mais cruel do que a crueldade de uma cultura perdida,
Mais duro que a aculturação, inculturação, transculturação?
Tori,
Símbolo de tantos,
Expressão única de um ser que desistiu de ser o que era,
Para nunca mais descobrir quem é.
Tori!

Todos tem história para contar

O segredo de contar histórias não está no grande enredo que se vive,
Mas na capacidade do narrador em descrever o enredo.
Todas histórias são grandes enredos
Todos os dramas épicos, maravilhosos e grandiosos.
Na sensibilidade do poeta, do narrador, do músico.
A história banal e rotineira torna-se rica por causa da banalidade,
Sua rotina é seu grande enredo.
Existe alguma coisa mais dramática que o cotidiano?
A história trágica é um grande enredo, precisamente por causa de sua tragédia,
Por ter percorrido caminhos tão íngremes.
As fachadas das lojas que conheci na infância,
As cidades mais sem graça, por onde passei e vivi,
Possuem grandes dramas,
São grandes contos.
Cabe ao artista extrair seu mais profundo dilema e traduzi-lo.
O segredo não está no por do sol,
Na feiúra do lugar,
Na magnificência do ato,
Mas na capacidade do artista em apreender a imagem
E traduzir seu drama.
O deserto pode ser lindo
Também pode ser desafiador, selvagem, agressivo.
A poesia, a música, a pintura, o literato, podem transformá-lo em obra de arte.
A final, a beleza está no coração daquele que a contempla.
O banal tem história,
Todo banal é magnífico.
Aquela criança despretenciosa brincando na rua
Possui um fantástico enredo a ser construído.
Sua história pode ser fantástica,
Se relatada por alguém que saiba tal arte.
A famosa foto da mulher afegã
A dor da criança nua na guerra do Vietnã,
Os carregadores na fotografia de Serra Pelada.
Fatos corriqueiros transformados em expressões clássicas da história universal.
As casas, pessoas, ruas por onde passamos.
Contam histórias fabulosas:
Traição,
Mentira,
Farsa,
Alegria,
Celebração.
Velhas cidades relatam sagas de famílias.
A minha própria história,
Com seus dilemas, medos, obsessões, fé e contradições,
São historias para grandes clássicos.
Todos tem historias para contar,
Mas nem sempre existem homens que as contem.
Sobram narrativas, faltam narradores.
Gurupi tem história para contar
Iguape tem história para contar.
Afinal,
Quem poderia imaginar que de Nazaré pudesse surgir alguma coisa boa?

Tire férias !

Muitas pessoas se tornam angustiada nas férias,
O tempo sobrando
A falta de quem os controle,
Ninguém para controlar...
A inexistência de relógios para bater pontos.
E a angustiante experiência de viver com a familia que a gente não mais entende.
Tudo isto se torna muito pesado.
O excesso de trabalho tem o poder de nos desumanizar
Ser humano se torna um peso
Não mais queremos ouvir por ouvir,
Não fazer nada...
Nossas conversas precisam ser quantificadas,
Colocadas em gráficos,
Projetadas em multimídias,
Transformadas em estatísticas.
No entanto,
Por do sol não pode ser quantificado
Brincadeiras, danças e músicas não geram dividendos,
Apenas afetos.
Tire férias!
Mas tire férias de si mesmo,
Dos compromissos escravizantes que te automatizaram
Tire férias da sua onipotência,
Desligue o celular,
Antes desligue a si mesmo.
O cemitério está cheio de gente insubstituível.
Se você morrer, seja honesto,
Fará falta a alguém?
Seu dinheiro?
Servirá de disputa entre filhos, noras e genros.
Tire férias.
Deus não fez o homem por causa do sábado, mas o sábado por causa do homem.
Deus não descansou por causa de si mesmo,
Mas para nos ensinar que o único que não pode dormir
Se deu ao luxo de dormir,
Sem culpa, sem pressão de agendas,
Sem fantasmas da efetividade
Tire férias!
“Não há nada a dizer sobre o luar, mas a gente precisa ver o luar”.
Tire férias!
Tire férias de si mesmo,
De sua onipotência, arrogância, sede de poder,
Estupidez,
De sua ambição desmedida
De sua tolice notória!

Tantas histórias...

É...a vida é cheia de lances pitorescos,
De relatos não contados,
Experiência não divididas.
A vida não é um vídeo-game,
Não funciona no controle remoto,
Nem caminha no automático.
A vida não possui previsibilidade...
O certo de hoje é o incerto de amanhã,
A história não nos ensina sobre o amanhã,
Ela apenas relata como o imprevisível aconteceu ontem.
No meio de relatos confusos,
Pessoas confusas escrevem suas histórias em cenários confusos.
Escrevem suas histórias como coadjuvantes,
A história não está em suas mãos...
“Qual de vós, por ansioso que esteja pode acrescentar um côvado...?”
Tentam transformar a história em parceiro,
No entanto a história trapaceia e ridiculariza.
A história de Maria pode se juntar a de João,
Mas a história de João não é a de Maria.
Vivem juntos, mas possuem relatos distintos,
Percebem a vida por ângulos distintos.
Interpretam a história compartilhada de forma distinta
A hermenêutica da vida não é homogênea,
A história não é retilínea.
Existem muitas histórias dentro de cada história.
Existem muitas histórias dentro da própria história.
A história que se fala não é a história,
Mas apenas o relato de alguém que a interpretou.
Por isto a história do opressor não é a mesma do oprimido.
A história quase sempre tem sido escrita pelos poderosos.
Os fracos não possuem história.
Não lhes foi dado o direito à sacralidade da memória.
A história do vizinho não é a minha história,
Nem a minha história é percebida de uma única forma,
Existem várias versões da minha existência.
E eu mesmo não sei contá-la como ela é.

Rir de si mesmo

Poucas coisas são tão maduras como a capacidade de rir de si mesmo.
E poucas são tão complicadas...
Já parou para pensar em quantas trapalhadas você se mete?
Quantas gafes...
Cada uma delas mais bizarras que as outras.
Rir de si mesmo significa maturidade,
Rir sem se depreciar,
Rir para gerar leveza,
Não o riso de quem se culpa ou condena,
Mas como gente que começa a entender a vida como uma verdadeira piada.
Você é uma piada!
A crise em si mesmo é riso.
Daqui um pouco, quando você olhar o retrovisor de sua história,
Vai perceber quanta coisa engraçada aconteceu hoje,
Apesar de você ter sofrido tanto pelo que aconteceu.
Rir de si mesmo significa que você não precisa zombar do outro,
Nem menosprezar o outro,
Nem realçar o lado negativo do outro.
Você é a razão da sátira mais profunda.
Você é patético!
Mas ainda assim, você tem o seu próprio jeito de ser
Existem pessoas que amam você assim, ou talvez não o amem por isto.
Mas no fundo, é só você que vai ter que lidar com você mesmo.
Não dá para se comparar com ninguém.Já imaginou a discussão da ciência sobre a hipótese da clonagem?
Abomino esta possibilidade a partir de mim mesmo.
Já imaginou alguém sendo o seu clone?
Posso pensar numa Cindy Crawford, Angeline Lilly...
Mas outro eu?
Nunca!
Muitas vezes não me suporto...
Imagine eu refletido nos outros?
Um eu no outro?
Bizarro!!!
Aprenda a não se levar tanto a sério.
Você tem perdido tempo demais.
Ria de você.
Ria por você ser tão sem graça como você é.
Ria do seu humor tão pobre,
Zombe deste jeito manipulador e controlador que você tem.
Você não é Deus...apesar de pensar que é.
Ria da sua disciplina tola, seus trejeitos ridículos, sua ausência de cumplicidade com a vida.
Ria da sua miséria, do seu desajuste.
A sua gula obsessiva,
Seu caminhar desajeitado,
Seus versos sem rimas,
Suas piadas repetidas,
Sua roupa de mau gosto,
Ria, porque no fundo, apenas o riso exerce alguma função realmente fenomenológica digna de apreciação.

Apenas o riso é filosoficamente sério.

Quanto tempo

(I)
Quanto tempo faz que você não experimenta o toque de Deus,
Que você não se impressiona com a sua beleza e majestade,
Que suas orações parecem nada significar,
Que Deus parece se esquivar de você?
Que seus pecados não mais o afligem?
Que as realidades espirituais não são mais experimentadas em seu coração?
Que cânticos, hinos, leitura da palavra já não mais o surpreendem?
Que suas orações deixaram de ter algum valor para sua alma?

(II)
Quanto tempo faz que você não se impressiona com seu filho?
Que você não beija e abraça com ternura sua esposa?
Que não existe um beijo apaixonado entre vocês?
Que seu filho não te emociona?
Quanto tempo faz que você não tira um tempo para seus amigos?
Que seu coração não se alegra mais em coisas simples e espontâneas da vida?
Que você não ora por seu amigo?
Que você não visita alguém sem agenda e cronograma?

(III)
Quanto tempo faz que você vive por viver?
Sem expectativa do novo, do belo,
Sem a capacidade do assombro?
De se impressionar com o por do sol,
Com o silêncio da noite
Com a amizade espontânea
Com a vida em si mesma?

Pressa

Para onde você vai tão apressado?
Furando filas,
Aborrecendo outros,
Pisando no calcanhar de alguns
Para entrar no mesmo ônibus?
Você ainda não entendeu que todos estão com o bilhete nas mãos?
E que todos querem ir para o mesmo lugar?

Não atropele!
Esta fila reflete sua alma
Sua atitude de levar vantagem sempre
De querer furar filas,
De ser sempre o primeiro,
Mas ainda assim, você vai parar no mesmo lugar designado.
O ônibus não sai antes do horário
Todos aguardam os mesmos movimentos.
Não apresse o rio, ele corre sozinho.
Aprenda a ler a vida,
Veja como funcionam as estações,
O fluxo e refluxo das marés
O nascer e o por do sol..
Olhe para os lados,
Não precisa atropelar.
Ou então: atropele mesmo! Já que isto é questão de opção.
Mas saiba que isto não vai fazer você chegar na frente.
Você vai se assentar no seu lugar determinado.
Sua bagagem vai sair na ordem estabelecida.
Mas você ficou mais agitado,
Você irritou outros.

E eis você aqui,
Lado a lado com aqueles que você atropelou.
É... a vida é assim mesma.

Você correu,
Você se cansou,
Você se irritou,
E onde você chegou com tudo isto?

De nada valeu a valentia,
A impaciência,
A correria.
Não queiras ser sempre o primeiro em exigir, em lamentar,

“A paciência é uma planta amarga que produz frutos doces”

Poema do anonimato

Vejo pessoas passarem
E passo por tantas pessoas
De onde vêm, para onde vão?
Que histórias abrigam no peito?
Fazem amor? Fogem do amor?
Quantos enredos cinematográficos cada uma destas vidas poderia inspirar.
Conflitos mal resolvidos, dramas sem fim, lutos, perdas, paixões, alegrias...
Meu Deus!!! Como é rica e como é pobre a vida!
Qual será o sentido de cada uma destas narrativas.
Passam apressadas,
Algumas eufóricas,
Outras acabrunhadas, assustadas, acuadas.
Correndo do predador?
Fugindo da vida?
Para onde se refugiam quando a dor chega, se é que a dor algum dia saiu.
Algumas parecem animais acuados,
Encontram-se armadas,
Enojadas.
Buscam um grande amor?
Buscam sentido na vida?
Buscam a morte?
Na verdade seu mundo é um segredo,
Afinal, o coração do homem é um poço profundo,
Indecifrável.
Temos tantos mundos escondidos dentro de nosso próprio mundo.
Tantas ameaças, trincheiras, porteiras,
Tantas estradas, vilas, vielas.
Nem sei porque pegamos esta via, se nem mesmo estamos conscientes para onde estamos indo,
De quem estamos fugindo.
Nada, poeira cósmica, universo anônimo...
Meu nome é ninguém.

O insubstituível

La vai o insubstituível
Todas as coisas acontecem por sua iniciativa
Sem ele nada foi feito sem sua anuência e liderança.
Ele é imprescindível, indispensável.
Seus colegas de trabalho nada fazem sem ele
Sua familia depende completamente dele
A empresa não anda sem ele,
As organizações existem em torno dele.
Por isto sua agenda está sempre lotada
Muitas vezes já achou que era Deus,
Mas ultimamente ele está certo de sua onipotência.
O que o mundo pode fazer sem ele?

Que é isto que ouço? Não pode ser...
Isto é uma tragédia! Ele estava tão bem.

O insubstituível morreu!!!
Como as coisas vão andar sem ele?

A empresa continua caminhando sem ele
Sua familia sobreviveu sem ele
Sua esposa (dizem as más línguas), ta até mais feliz sem ele.
O dia nasceu sem pedir licença
O sol surgiu sem que o galo cantasse...
A primavera chegou sem sua presença,

Ninguém faliu, as coisas não deixaram de acontecer,
Apesar dele ser tão indispensável.

É, o cemitério está cheio de gente insubstituível.

Nosso ser misterioso

Pobre daquele que acredita na sua previsibilidade
Mais triste ainda é quem acredita na sua plausibilidade.
Acredite em mim: você não é confiável!
O ser humano carrega em si o artefato da contradição e do mistério.
Não compreende o outro porque não é capaz de compreender suas próprias contradições e angustias.
O ser humano é misterioso...
Cada um é um mistério e uma ilha de surpresas e causalidade
Não é capaz de ser coerente em seu próprio modo de agir
Faz o que detesta
É incapaz de se esquivar mesmo daquilo que sempre critica.
Sua história tem a ver com natureza e ambiente
E ele se submete às contradições de um e de outro
Ele é o seu próprio fantasma e mistério
E não consegue escrever seu próprio script.
Sua história não é previsível:
O infortúnio
A fortuna
E muitos outros acidentes e variáveis
O ajudam a ser o que ele não é
E não aquilo que deseja ser.
O herói pode amanhã ser vilão
O nefasto pode se tornar herói
O moralista esconde desejos
E sua neurose se torna a sua própria acusação
Quem há que possa discernir suas próprias faltas
Entender seu próprio coração
Tão enganoso e tinhoso.
O ganho de hoje é a perda de amanhã
A perda pode se tornar o ganho.
Portas fechadas podem abrir grandes portais
E portas abertas podem ser armadilhas
Aquilo que é a glória de hoje
Pode ser a vergonha de amanhã
O bandido vira mocinho
E o mocinho pode ser o verdadeiro vilão
Quantas surpresas teremos no desvendar da história
Quem revelara o mistério de seu próprio mistério?
Qual dentre os homens tem poder sobre a morte?
Quem conhece as sombras de seu próprio coração
E os meandros de sua impulsividade?
Somos ao mesmo tempo heróis e bandidos
Mocinhos e vilões
Anjos e demônios
Somos a soma de nossa própria incoerência
Somos o próprio mistério...

Natal sob diferentes prismas

É tudo uma questão de ponto de vista:
Para muitos, natal é a melhor época do ano,
Para outros, a data mais depressiva:
Aumentam os suicídios,
A solidão,
A saudade.
O que fazer quando nada pode ser feito?

Como percebe o natal aquele que não encontra motivos para celebrar?
Pobres que não podem trazer presentes aos filhos?
Crianças que vêem os outros carregados de souvenirs,
Com a massificante propaganda na TV?
Como percebe o natal os palácios repletos de convidados,
Com pessoas com um buraco negro na alma?
Com experiência de abandono e vazio?
Com presentes cada vez mais caros e com menos sentido?
Nem sempre as festas natalinas são boas:
No corpo daqueles que sofrem,
Naquele cujas emoções estão esfaceladas,
Na visão do pobre sem recursos,
E do rico sem alma?
Como se encontra os encarcerados nos leitos dos hospitais,
Os encarcerados na angústia da solidão e da culpa,
Na dor de quem perdeu o amado.
Meu Deus,
Será que um dia o natal deixará de ser tão ambíguo?
Vai cumprir o propósito para o qual foi feito?
Visitar a monotonia dos pastores,
Satisfazer o misticismo dos magos,
Inquietar os palácios com seus Herodes,
Questionar o universo vazio dos religiosos,
Dar sentido aos pobres,
Levar os ricos a depositarem seus presentes?
Quando o natal vai se plenificar em nós?
Nos ensinar que a história dos homens só faz sentido,
Quando invadido pela história de Deus?

Lágrimas

Nunca chorei a dor que realmente me tenha doído.
Já chorei angústias periféricas, dores marginais.
Já chorei a dor dos outros,
As dores de minha fantasia,
Dores imaginárias.
Nunca chorei a mim mesmo
A dor de minha dor
O sofrimento real.
Neguei prá não chorar,
Por isto a dor que me dói não é a dor,
Mas a ausência de minha dor.
Choro não ter razão para chorar.
A dor que me dói faz parte do meu repertorio de dores não doídas.
Pequei por não chorar,
Porque quando o fiz não era necessário,
Mas na necessidade abafei a dor.
Por ser sofrida a dor de quem sofre,
Recusei a dor em mim mesmo.
Rejeitei lágrimas, endureci-me.
Não tenho chorado a dor real,
A dor daqueles que precisam de alguém que chore por eles.
Nunca chorei a dor dos esquecidos,
Não me condoeu a solidão dos desprezados,
O desconforto do oprimido.
Nunca chorei a dor dos esquecidos,
Nunca chorei a dor de Deus,
E sequer chorei minhas dores.
Por isto minha dor dói tanto
E para meu grande espanto,
Não consigo chorá-la.

Fantasmas no silencio

Há fantasmas no silêncio

O silêncio é uma forma eloqüente de falar,
Porque o não falar também é uma forma de dizer.
É como o processo de decisão.
Não decisão também é uma decisão
A decisão de não decidir.
Por isto, esteja atento ao silencio.
Ele é sempre carregado de fantasmas.
Muitos falam muito para não dizer realmente o que precisa falar.
Isto é falatório.
Como o falante, que na sua timidez fala muito para acobertar sua forma de ser.
Isto é tagarelice.
Muitos falam e não dizem
Outros tanto, sem dizer, falam.
Precisamos aprender não a linguagem das palavras, mas sim as do pensamento.
O silêncio é carregado de fantasmas.
Alguns assustadores...
Dores não reveladas,
traumas inconscientes,
angústias não elaboradas,
culpas corrosivas.
Pior que a própria dor é a incapacidade de falar sobre ela.
Dizer já é processo de cura.
O silêncio pode ser a tentativa de se ocultar o cadáver,
De fazer de conta que ninguém morreu.
Mas a verdade grita nas praças,
Assim como brada nos recônditos de nossa alma.
Este falar silencioso pode abrigar raiva,
Dor não resolvida,
Medo de julgamento,
Sentimento de desprezo.
Não tendo ou não podendo falar, é melhor calar.
Mas como calar a dor que grita?
Como simular que a dor não é dor?
Há fantasmas no silêncio,
E há tantos gritos silenciosos.
Eles se movem nas madrugadas de nossa existência,
Se movimentam na nossa agitada agenda que não tenta ouvir a voz interior.
Neste silencioso movimento
Muita coisa é dita sem dizer.
Como discernir a linguagem do silêncio
Se mesmo quem articula a voz, no silêncio, a compreende bem?
Como discernir fantasmas do silêncio,
Se os fantasmas sequer existem?